terça-feira, 3 de junho de 2025

Quando o cérebro diverge do corpo na identidade de género


O corpo e o cérebro desenvolvem-se, em termos biológicos, em processos cheios de variabilidade: mutações ou falhas de sincronização hormonal. Logo, um "desencontro" entre o cérebro e o corpo -- em que a identidade de género que é ditada pelo cérebro não coincide com o sexo biológico que é expressado pelo corpo -- não se trata necessariamente de uma aberração, nem de uma monstruosidade, mas de uma possibilidade biológica que é rara. Ainda assim há uma minoria de pessoas que apresentam uma variação do normal, onde normal significa que é o mais frequente na maioria da população de homo sapiens.

Pergunta central: corrigir o cérebro ou corrigir o corpo? Aqui, é onde começa a verdadeira questão ética e científica. Corrigir o cérebro (por exemplo, através de medicamentos, terapias neuronais, ou intervenções futuras) seria mais lógico em termos evolutivos, pois a função do cérebro é adaptar o corpo e o comportamento ao ambiente. Porém, atualmente não temos tecnologia segura nem ética para "reprogramar" identidades de género de forma voluntária e sem danos. Hoje, o que há são "terapias de conversão", práticas condenáveis que ainda são repudiadas pelas melhores opiniões.

Hoje, o está estabelecido por consenso entre especialistas é a modificação no corpo, e não a modificação no cérebro. Tratamento hormonal e //ou cirúrgico é o caminho mais viável para reduzir o sofrimento do indivíduo. Hoje a sociedade é muito respeitadora da experiência subjetiva da pessoa, e não tenta negar o que ela sente como a sua identidade mais profunda. Por isso, a medicina atual, em consenso ético, caminha para a via de modificar o corpo para alinhar com o cérebro, e não se intrometer no cérebro, até porque ainda é tecnicamente muito arriscado, e o cérebro é a última fronteira da arbitrariedade da intromissão da ciência na esfera do "ser" e da "alma", ou seja, da mente humana. 

Biologicamente, o cérebro é o centro da percepção do "si", ou seja, é ele que "manda" na definição da identidade. Portanto, se há conflito, a abordagem mais sensata (hoje) é respeitar o que o cérebro sente e, se necessário, fazer adaptações no corpo para reduzir o sofrimento, e assim, fazendo-lhe a vontade. O cérebro é o depositário último e a última fronteira da identidade de cada um. A ciência atual, por prudência ética, prefere ajustar o corpo ao cérebro, do que tentar remodelar o cérebro, até porque isso seria perigoso, antiético e, no momento, tecnologicamente impossível.

Sabemos que ainda há muitas pontas soltas ao nível da sociedade e da ciência no que respeita às anomalias do cérebro que comportam uma vasta tabela classificativa nas disciplinas da psicologia, da psiquiatria, e do direito quando está em causa a decisão do juiz em considerar inimputável alguém depois de ter cometido um crime. E hoje, a jurisprudência distingue os psicóticos dos psicopatas. Um criminoso, portador de uma psicose é inimputável, porque não tem consciência do certo e do errado. Ao passo que um criminoso, ainda que receba o rótulo de psicopata, como ainda assim tem consciência do certo e do errado, é imputável, e portanto, tem de ser condenado e cumprir pena como outra pessoa qualquer. Mas, biologicamente, a psicopatia também é uma variação neurológica do cérebro com carácter de anomalia.  Há, de facto, alterações estruturais e funcionais nos cérebros dos psicopatas, especialmente na comunicação entre os lobos frontais (controlo racional) e a amígdala (emoções, medo, empatia). Ou seja: eles não escolheram ser assim da mesma forma que uma pessoa trans não escolheu a sua identidade de género.

Então, porque é que tratamos diferente? No caso da identidade de género, o argumento mais consensual diz respeito ao sofrimento humano. No caso do trans, esse sofrimento tem a ver com o próprio indivíduo, e não com terceiras pessoas. Tem a ver como ele se sentir desconectado do seu corpo ou da forma como a sociedade o reconhece. No caso da psicopatia, o sofrimento é para terceiros, ou seja, o psicopata tem uma alta probabilidade de causar mal aos outros (fraudes, manipulações, violência, homicídios). O princípio ético que distingue os dois casos é o do dano a terceiros. Em ética liberal clássica (por exemplo, segundo John Stuart Mill), um indivíduo pode viver como quiser, a menos que cause dano aos outros. Portanto, pessoas trans devem ser respeitadas em sua identidade, pois o seu sofrimento é interno. Psicopatas precisam ser contidos, vigiados ou, se necessário, presos, porque representam uma ameaça objetiva à sociedade. Dois pesos e duas medidas? Sim, há dois pesos, mas não duas medidas injustas. O critério é: Se a alteração provoca sofrimento somente ao próprio indivíduo, a sociedade deve ser liberal. Se a alteração implica riscos graves para outros, a sociedade deve tomar medidas para se proteger. 

Uma outra questão que podemos abordar é se há exagero em proclamações e provocações ao status quo. O exagero que surgiu com "trans" veio do movimento conhecido por "woke", provocando agitação pública, sobretudo no desporto, ao dogmatizar de tal maneira que deu azo a oportunistas com pénis dizerem-se mulheres, infiltrarem-se nas modalidades femininas, e com isso arrebatarem as medalhas todas nas competições. O movimento "woke", ao fazer da ideia de que "o que cada um sente é soberano e inquestionável", portanto uma sentença absoluta, esqueceu as implicações práticas e concretas disso em ambientes competitivos como o desporto.

Quando alguém se afirma, isso basta, a autoidentificação, para se ser reconhecido como mulher ou homem, porque "ninguém tem nada com isso". E assim se abriu, mais uma vez, a caixa de Pandora que veio novamente dar cobertura a todo o tipo de abusos e desonestidades. Assim, indivíduos biologicamente masculinos -- com vantagens musculares, densidade óssea, capacidade respiratória e força -- adquiridas pela testosterona da puberdade masculina, vieram competir com mulheres biológicas, em franca relação de desigualdade. Pessoas com pénis a ganhar competições femininas, é factual e já aconteceu várias vezes, especialmente em natação, atletismo, halterofilismo, e MMA (artes marciais).

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