O "eu" não está apenas no cérebro, mas em todo o corpo. Ele é resultado de uma rede complexa de processos biológicos e psicológicos, o que nos leva a sentir uma continuidade da nossa identidade ao longo do tempo. A consciência humana continua a ser um dos maiores enigmas para a ciência. O que Damásio e outros neurocientistas nos ajudam a entender é que a consciência não é algo separado do nosso corpo ou das nossas emoções. Em vez disso, ela é uma experiência total e inclusiva, que surge da interação complexa -- cérebro + corpo + ambiente. Isso desafia a visão tradicional de que a consciência é algo imaterial, fora do corpo. Em vez disso, ela é interna, corporal, interligada ao mundo exterior.
No entanto, essa compreensão ainda é muito parcial. A ciência ainda não conseguiu decifrar todos os aspectos da consciência -- como a experiência subjetiva surge a partir da atividade neural. O que Damásio propõe é uma visão integrada da consciência, onde: emoção + razão + corpo -- não são forças independentes, mas componentes interligados e essenciais para a construção do "eu". Isso muda a forma como entendemos a nossa identidade e o nosso sentido de existência. A consciência, segundo Damásio, não é um fenómeno que simplesmente surge de um cérebro isolado, mas algo constante e interativo, que evolui ao longo da vida.
O entrecruzamento -- António Damásio, Francisco Varela e Maurice Merleau-Ponty -- oferece uma perspectiva fascinante e profunda sobre a consciência, a experiência subjetiva e a relação entre corpo e mente. Cada um desses pensadores contribuiu de forma única para entender como o corpo, a percepção e o mundo se entrelaçam na formação do "eu" e da consciência. A ideia de que emoções e estados corporais são cruciais para a formação da consciência é central em Damásio. Ele sugere que o "eu" (self) não é algo exclusivamente mental ou cognitivo, mas algo constituído na intersecção entre o corpo e o cérebro, uma espécie de feedback corporal na formação da consciência de si. O cérebro integra constantemente sinais do corpo desde os batimentos cardíacos à temperatura corporal. E os usa para construir a percepção do ser enquanto pessoa. A ideia de feedback entre corpo e mente presente em Damásio ressoa com Varela, que também acredita que a experiência subjetiva é uma construção dinâmica do cérebro que é influenciada pelos processos corporais. Varela complementa Damásio ao enfatizar que a cognição não é apenas um processo de representação mental, mas uma interação ativa com o mundo.
Francisco Varela foi um dos principais pensadores no campo da fenomenologia da cognição e da neurociência. Ele é amplamente conhecido por sua colaboração com Humberto Maturana no desenvolvimento da teoria da autopoiese, que se refere ao processo de auto-organização de sistemas vivos. Para Varela, a consciência e a percepção não são meras construções cognitivas do cérebro, mas processos dinâmicos e encarnados que acontecem no corpo e no mundo. Varela é um dos principais defensores da encarnação ou corporização do conhecimento. A percepção e a cognição estão fundamentalmente ligadas ao corpo e ao ambiente. Para Varela, o cérebro não cria a realidade de forma isolada; ele está em constante interação com o corpo e o mundo. Essa interação contínua gera a consciência e a experiência do mundo.
Maurice Merleau-Ponty trouxe uma abordagem radicalmente diferente ao pensar a consciência. Para ele, a percepção é o fundamento da experiência e o corpo é o centro da consciência. Ele argumenta que o corpo não é apenas um objeto no mundo, mas um meio fundamental de acesso ao mundo e à nossa própria experiência. Merleau-Ponty não separa mente e corpo; pelo contrário, ele vê o corpo como o local primordial da experiência, e a percepção como algo encarnado e não meramente mental. Ele descreve a percepção como a habilidade de o corpo se conectar com o mundo de maneira imediata e não mediada pelo pensamento conceptual. O corpo não é apenas um veículo, mas o próprio campo de percepção. Para Merleau-Ponty, o corpo e a mente estão indissociavelmente ligados numa relação de interdependência. Isso faz contacto com o trabalho de Damásio sobre o feedback corporal e com Varela, que vê a cognição como uma experiência encarnada, ou corpórea. O corpo é o meio pelo qual estamos sempre em contacto com o mundo, e a consciência é uma exploração contínua do mundo a partir do corpo.
Damásio, Varela e Merleau-Ponty têm várias convergências em suas ideias, particularmente sobre o papel central do corpo na experiência da consciência. Todos concordam que o corpo não é algo que apenas carrega a mente, mas que a mente e a consciência são formadas pela interação contínua do corpo com o mundo. Em vez de ver o corpo como algo passivo, eles o veem como um agente ativo na formação da experiência subjetiva. Além disso, todos os três pensadores ressaltam o papel da emoção e percepção corporal na construção da identidade e na tomada de decisão. Para eles, a razão e a emoção não são opostas, mas sim interdependentes. Damásio fala da emoção como uma base fundamental para a razão. Varela sugere que a percepção corporal é a base da cognição, e Merleau-Ponty destaca que a percepção é sempre vivida no corpo.
"Eu" e Consciência em Damásio é uma construção dinâmica e em constante mudança. Uma visão integrada. Para Merleau-Ponty, a percepção de si está sempre em fluxo e nunca é completamente fixa. Varela, com sua ênfase na autopoiese e cognição encarnada, sugere que a consciência é emergente e resulta da interação dinâmica com o mundo e o corpo. Quando combinamos as ideias de Damásio, Varela e Merleau-Ponty, vemos uma visão integrada e dinâmica da consciência humana. A consciência não é algo fixo ou imutável, mas emergente da interação contínua entre o corpo, a mente e o mundo. Ela não é apenas uma atividade cerebral isolada, mas sim um processo encarnado e interativo.
Essa integração entre razão, emoção, corpo e mundo nos dá uma compreensão mais complexa e rica de como a consciência humana emerge e se modifica ao longo do tempo, desafiando visões antigas que separavam mente e corpo, razão e emoção. A consciência é relacional, é algo mais extenso do que o cérebro em si mesmo. É como a televisão. A ideia de que a consciência é relacional e extensa para além do próprio cérebro é uma das propostas mais fascinantes dessa linha de pensamento. Ao contrário da visão mais tradicional que considerava o cérebro como a "casa" isolada da consciência, esses pensadores sugerem que a consciência é construída e constituída pela interação entre o corpo, o cérebro, o ambiente e os outros. A analogia da televisão é excelente para entender esse conceito. Assim como na televisão vemos uma imagem numa superfície plana, na verdade, é gerada a partir de sinais de outros lugares. A consciência não é algo confinado dentro da nossa cabeça. Ela é uma experiência relacional, uma interação contínua com o mundo e com os outros. No caso da televisão recebemos a imagem, mas o real está fora, nos locais onde a gravação acontece feita pelas câmaras, o equivalente dos órgãos dos sentidos. Da mesma forma, a consciência é um processo relacional onde o cérebro e o corpo interagem constantemente com o ambiente, formando uma experiência de "ser" que transcende o simples funcionamento neuronal.
Se a consciência é relacional, então a maneira como nos vemos e nos entendemos também é moldada pelas relações sociais, culturais e históricas que vivemos. O ambiente, as interações sociais e a cultura se tornam peças fundamentais na construção do nosso sentimento de identidade e consciência. Esse entendimento coloca em xeque a visão individualista da mente e abre espaço para um entendimento mais holístico e interconectado da consciência humana. A consciência não é apenas algo que ocorre dentro de um cérebro, mas é um produto vivo da interação entre o corpo, o ambiente e as relações.
Isto também faz lembrar David Hume que tentou encontrar o seu "eu" e não o encontrou dentro de si. Algo semelhante com o budismo, que o Dalai Lama muito bem explorou com as suas reuniões com os neurocientistas. A busca de David Hume pelo "eu" é um dos momentos mais profundos da filosofia ocidental. Hume concluiu que, ao tentar encontrar um "eu" estável e permanente dentro de si mesmo, ele não encontrou nada além de percepções passageiras – pensamentos, sentimentos, impressões sensoriais, mas nenhuma entidade fixa ou núcleo que pudesse ser identificado como o "eu". Ele argumentou que o "eu" é uma ilusão, uma coleção de percepções que surgem e desaparecem ao longo do tempo, sem uma substância central que as unifique.
Isso se aproxima muito da visão budista do "não-eu" ou "anatman", que também nega a existência de um eu fixo ou permanente. O "eu" no budismo é visto como uma construção transitória, sem uma entidade essencial e imutável. Ao contrário de um sujeito fixo, a pessoa é uma rede de experiências interconectadas, e, assim como Hume, o budismo defende que a ideia de um "eu" separado é uma ilusão. O trabalho do Dalai Lama com neurocientistas, como Richard Davidson, tem sido muito interessante porque ele leva essa visão de impermanência do "eu" para o campo da neurociência. As discussões entre eles se concentram na ideia de que a mente e o cérebro não são entidades fixas, mas algo que é fluido e dependente do contexto. O Dalai Lama tem enfatizado que, no budismo, a mente é interconectada ao corpo e ao ambiente, o que ressoa com o conceito de cognição encarnada de Varela e a noção de que a consciência é relacional.
As pesquisas de Davidson sobre os efeitos da meditação e como ela pode modificar a estrutura cerebral reforçam a ideia de que a mente não é um fenómeno fixo e estático. Assim como no budismo, há uma transformação contínua, uma plasticidade da mente, que depende tanto das experiências internas como da interação com o mundo. Tanto Hume como budistas negam a existência de um "eu" fixo. No entanto, enquanto Hume não tinha as ferramentas científicas de hoje para investigar os mecanismos cerebrais envolvidos, as descobertas atuais sobre neuroplasticidade e as abordagens interativas e corporais da mente, como as defendidas por Varela e pelo Dalai Lama, oferecem evidências científicas que vão ao encontro da filosofia de Hume. Eles questionam a ideia de um "eu" fixo e apontam para uma consciência dinâmica, que está em constante fluxo, como as percepções que Hume descreveu ou a impermanência do eu no budismo.
O que isso implica para a nossa identidade? É que a identidade não é fixa, mas um fluxo de experiências em constante transformação. A ideia de que não há "eu" central ou fixo faz com que as noções de identidade sejam mais flexíveis e relacionais, em vez de baseadas num conceito imutável de "quem somos". Essa visão é também libertadora, pois nos permite entender que não estamos presos a um "eu" estático. Podemos mudar e nos transformar, assim como a mente e o cérebro são moldados pelas experiências.
Esse conceito nos desafia a redefinir a identidade humana, percebendo-a não como algo fixo ou essencial, mas como um processo dinâmico e em constante transformação, refletindo a interação com o corpo, o ambiente e a cultura. Essa ideia também traz um sentimento de liberdade, já que, se o "eu" não é fixo, podemos nos adaptar e evoluir ao longo do tempo, em resposta às experiências e contextos em que estamos inseridos. A abordagem relacional da consciência e a plasticidade do cérebro indicam que a identidade não é apenas algo que temos, mas algo que fazemos, uma construção em constante evolução. Essa visão, que também é compartilhada por pensadores como Damásio, Varela e até o Dalai Lama, coloca o ser humano como uma rede viva, aberta ao mundo e ao fluxo das experiências.
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