domingo, 29 de junho de 2025

O capital social e a punição antissocial


O capital social de um país tem correlação com as taxas de punição antissocial. Sociedades nas quais as pessoas não confiam umas nas outras, e não possuem nenhum sentimento de eficácia prática -- como aquele que tem a ver com o sentimento utilitarista, ou a ética consequencialista anglo-saxónica assente em David Hume e Stuart-Mill -- a punição antissocial é máxima. E a punição antissocial vai a tal ponto que nem a generosidade "em excesso", em contextos de baixo capital social, escapa. 

Punição antissocial ocorre quando uma sociedade pune os seus cidadãos, não por quebrar normas, mas por se comportarem de forma demasiado generosa, compassiva ou cooperativa. Isso parece contraintuitivo, mas tem sido amplamente documentado em experiências laboratoriais e estudos transculturais. O estudo mais bem conseguido resulta das investigações de Herrmann, Thöni e Gächter, realizadas em2008, e que foi objeto de publicação na Science, intitulado: "Antisocial Punishment Across Societies", e que constitui hoje já um clássico na bibliografia da especialidade. A punição antissocial à generosidade não é irracional nem abstrata. Tem raízes profundas em normas culturais, estrutura social, educação e confiança coletiva. É funcional (embora disfuncional para o progresso) em ambientes onde a ordem social depende de conformidade absoluta, não de iniciativa pessoal. Reflete medo do julgamento, desconfiança nas intenções, e falta de redes horizontais de solidariedade.

Herrmann, Thöni e Gächter usaram o jogo do bem público (Public Goods Game) com punição opcional. Realizado em 16 cidades do mundo, incluindo lugares como Boston, Seul, Atenas, Muscat (Omã) ou Riyadh. Após a contribuição, os jogadores podiam gastar parte do seu dinheiro para punir outros participantes. Resultados: Em sociedades com alto capital social (como Boston ou Copenhaga), a punição era direcionada a "free-riders" (quem contribuía pouco). Em sociedades com baixo capital social (como Omã, Riyadh ou Atenas), havia altos níveis de punição antissocial, isto é, eram punidas as pessoas que contribuíam em demasia.

Nestes contextos de maior punição antissocial, os indivíduos tendem a confiar menos uns nos outros. São mais desconfiados em relação às intenções altruístas ("o que é que ele tem por trás?"). Um altruísta é visto como estando a exibir-se ou a manipular os outros. Neste tipo de sociedades há menos incentivos à cooperação anónima. A sensação de que "nada muda mesmo", ou que "ajudar não vale a pena", pode gerar ressentimento contra quem tenta cooperar ou mudar algo. A generosidade pode ser vista como um tipo reprovação indireta, mas implícita, ao comportamento dos outros. É sentida como uma crítica ostensiva, e nesse sentido gera uma reação de cariz punitiva. Isto é típico de sociedades mais rigidamente hierarquizadas, com normas culturais mais autoritárias. Em contextos mais hierarquizados e autoritários os comportamentos fora da norma (como generosidade espontânea ou destacada) podem ser percebidos como ameaça ao equilíbrio do grupo e à autoridade.

Em sociedades de baixa mobilidade social, a generosidade pode ser lida como exibição de estatuto social. O altruísmo real ou percebido pode gerar punição por inveja ou tentativa de nivelamento. Segundo alguns autores, como Robert Putnam, o capital social refere-se a confiança mútua entre cidadãos na qual se geram redes de cooperação. Havendo normas de reciprocidade, maior será o capital social, e como tal, menor será a punição antissocial à generosidade. Quanto menor for o capital social, mais comum será verificar-se punição antissocial. Isso verifica-se mais em sociedades onde a cultura cívica democrática é fraca. Ou onde há uma alta dependência de hierarquias formais, como é o caso de sociedades com uma estrutura tribal tradicional, em que a desconfiança interpessoal ocorre fora do círculo familiar.

Durkheim já havia verificado que onde não há normas cívicas partilhadas e respeitadas, o excesso de virtude é visto como desvio. E Tocqueville, em "A Democracia na América", observou que os americanos do século XIX tinham uma forte tendência para se organizarem em associações voluntárias, desde igrejas até sociedades de ajuda mútua. Essas redes fomentavam a confiança horizontal (entre iguais), fundamental para a democracia. Sociedades que carecem de uma cultura de associativismo tendem a depender apenas da autoridade vertical: Estado, tribo ou clã. A generosidade fora da estrutura formal é suspeita. A ausência de capital social horizontal leva a comportamentos como punição à cooperação espontânea. Tocqueville atribuía esse problema a uma falha no associativismo cívico e na autonomia cidadã.

Em contextos de baixa confiança social, a educação tende a ser mais autoritária, punitiva, hierárquica. Crianças aprendem que seguir regras é mais importante do que cooperar espontaneamente. A autonomia moral (agir com base em princípios) não é cultivada. Apenas impera a obediência. Consequências: quando alguém demonstra generosidade sem ser obrigado, isso desafia a norma aprendida. A reação social é desconforto ou até retaliação (punir quem está a "mostrar-se superior"). A educação moral falha em promover um sentido internalizado de justiça cooperativa. Isso é lido como: “ativismo suspeito”; “suborno indireto”; “exibição de estatuto”. As boas ações são politizadas ou vistas com cinismo. Isto reforça o ciclo de apatia cívica e ressentimento mútuo. Em suma: a generosidade em excesso pode, paradoxalmente, ser punida em sociedades onde a cooperação não é norma e a confiança social é fraca. O sentimento de impotência coletiva é elevado. Isso tem implicações importantes para políticas públicas, projetos de ajuda internacional e o modo como se tenta estimular a cooperação em diferentes contextos culturais.

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