quarta-feira, 4 de junho de 2025

A Cúria do Vaticano


O Papa, embora seja formalmente o chefe supremo da Igreja Católica, não governa sozinho. Existe uma estrutura institucional enorme chamada Cúria Romana, que é basicamente o governo central da Igreja. A Cúria é formada por cardeais, arcebispos, bispos, monsenhores, teólogos, canonistas e diplomatas, muitos dos quais estão no Vaticano há décadas, muitas vezes sobrevivendo a vários pontificados. Ou seja, o Papa pode ter intenções e ideias pessoais, mas na prática ele depende da Cúria para implementar qualquer decisão (e pode encontrar resistências silenciosas ou abertas).

Pensar que o desempenho de um Papa é apenas da sua lavra pessoal é uma visão extremamente simplista. O Papa, qualquer que seja, está inserido numa instituição que é talvez o exemplo mais antigo e resiliente de uma máquina institucional altamente estruturada, com doutrina, tradição e jogo de cintura interna no sentido de preservar o poder, e ao mesmo tempo, se possível, expandir estrategicamente a sua fé.

O que pode acontecer na sucessão de Francisco? Se os cardeais que elegerem forem fiéis à linha de Francisco, o próximo Papa poderá consolidar ainda mais a abertura pastoral. Dar pequenos passos em temas sensíveis (maior inclusão de mulheres, maior descentralização das conferências episcopais, maior flexibilidade pastoral). Existe uma minoria forte no Vaticano e em alguns setores da Igreja (especialmente na África e em partes dos EUA) que acha que Francisco foi longe demais em termos de estilo e foco. Tentariam eleger um Papa que, embora sem negar Francisco, recentrasse a Igreja num perfil mais "doutrinal". Isto seria feito sem ruptura aberta — sempre sob a retórica da “fidelidade” e da “complementaridade dos papas”.

Francisco, mesmo tendo sido uma figura mais "popular" ou "progressista" em alguns momentos, nunca deixou de agir dentro dos limites (ou fronteiras negociadas) que a própria instituição permite. E quando arriscou mais (como nos temas da ecologia, da imigração, da crítica ao capitalismo selvagem), fê-lo também com uma leitura à medida do que o momento histórico pedia para a própria sobrevivência moral da Igreja. É como se o Papa fosse menos "dono" da sua palavra e mais "porta-voz" de uma tradição viva e adaptativa, onde até os gestos mais pessoais são, de certa forma, filtrados pelo peso da história e da função.

Quando os cardeais se reúnem no conclave, eles não escolhem apenas a "melhor pessoa", mas tentam equilibrar interesses: geográficos, políticos, doutrinais, estratégicos. Depois de uma forte percepção de crise moral da Igreja, desde as polémicas ligadas à gestão financeira opaca do Vaticano até aos escândalos dos abusos sexuais, era necessário alguém com um perfil de renovação, mas também que não rompesse de modo radical com o que é essencial para a sobrevivência do sistema. Francisco teve de andar nesse fio da navalha. Fez reformas financeiras no Banco do Vaticano, mas de forma gradual. Denunciou as "estruturas de pecado" do capitalismo, mas nunca abandonou a doutrina tradicional sobre família, sexualidade, sacramentos. Apoiou movimentos migratórios, mas sem mudar a política da Igreja sobre Estados Nação. Incentivou a abertura pastoral aos divorciados recasados, mas sem alterar o dogma do matrimónio.

Portanto, ele foi tanto agente quanto paciente: agente de algumas mudanças estratégicas, paciente da enorme máquina de pesos, contrapesos e tradições internas. E mais: o Papa é também símbolo. A Igreja é mestre em usar símbolos. E às vezes um gesto simbólico (como o lavar os pés de imigrantes, ou recusar morar no Palácio Apostólico) vale mais do que mil documentos formais. Nenhum Papa governa como um "rei absoluto". Ele está mais para piloto de um transatlântico velho e resistente, que pode corrigir o rumo alguns graus para um lado ou para o outro, mas não pode fazer uma viragem brusca sob pena de afundar o navio.

João XXIII era visto como um Papa de transição, já idoso. Supunha-se que faria um pontificado curto e discreto. Surpreendeu tudo e todos convocando o Concílio Vaticano II, um evento monumental para “atualizar” a Igreja (aggiornamento). Quis abrir a Igreja ao diálogo com o mundo moderno. Incentivou a reforma da liturgia, a maior abertura ecuménica, o reconhecimento da liberdade religiosa. Muitos setores da Cúria resistiram fortemente, tentando controlar a agenda. Após a sua morte, os seus sucessores (Paulo VI e depois João Paulo II) trataram de "interpretar" o Concílio de maneira controlada, travando certas leituras mais revolucionárias. Moral da história: João XXIII iniciou algo imenso, mas a Igreja rapidamente "digeriu" e administrou o impacto para que não rompesse a continuidade histórica.

Já o Papa Paulo VI (1963-1978) com a encíclica Humanae Vitae foi um homem atormentado: via necessidade de adaptar certas posturas, mas também sentia o peso da tradição. Em 1968, após consultas a comissões de teólogos e especialistas (a maioria favorável à flexibilização), ele decidiu confirmar a proibição da contracepção artificial (Humanae Vitae). Grande decepção no clero e nos leigos. Forte contestação em várias conferências episcopais (especialmente na Europa e América do Norte). Mesmo assim, a estrutura conservadora do Vaticano empurrou-o para manter a linha tradicional por medo de abrir a caixa de Pandora da moral sexual. Mesmo um Papa que internamente via a necessidade de mudanças foi “cercado” pela lógica de preservação da doutrina tradicional.

João Paulo I foi eleito como uma figura de conciliação, mas pareceu querer iniciar rapidamente uma série de reformas: Reorganizar as finanças do Vaticano (onde havia escândalos e corrupção). Morreu de forma súbita após apenas 33 dias de pontificado. A morte gerou inúmeras teorias (nunca comprovadas) sobre resistência interna e conspirações. Mesmo que as explicações médicas oficiais apontem para infarto, o episódio reforçou a percepção pública de que mexer nas estruturas de poder internas do Vaticano é perigosíssimo.

Tanto a Igreja Romana como o Império Bizantino praticavam aquilo que se pode chamar de reformar sem parecer que se está a reformar. Quando a mudança é inevitável, ela é embalada como um retorno às origens ou uma melhor compreensão da tradição. A ruptura nunca é admitida como ruptura: é sempre "desenvolvimento orgânico", "crescimento na continuidade". No Império Bizantino, quando um imperador era incompetente, muitas vezes o sistema não colapsava. A máquina administrativa, a diplomacia refinada e o aparelho militar de defesa dos temas (províncias) garantiam a continuidade. A sucessão imperial podia ser turbulenta, mas o império em si era visto quase como uma entidade sagrada, que transcende a pessoa do imperador. Sabiam negociar, corromper, recuar taticamente, converter adversários, tudo para sobreviver.

No Vaticano, se um Papa fosse muito "revolucionário" ou muito "tímido", a Igreja encontrava meios de reequilibrar o sistema: através dos cardeais, dos sínodos, da pressão diplomática internacional, dos movimentos internos. A doutrina foi adaptada ao longo dos séculos (basta pensar na mudança de atitude em relação ao judaísmo, aos direitos humanos, à liberdade religiosa), mas sempre sob a aparência de continuidade doutrinal. A Igreja sabe usar tempo longo: prefere esperar décadas (ou séculos!) a fazer mudanças bruscas que poderiam provocar cismas. O Vaticano II foi apresentado como uma "volta às fontes" (ressourcement), não como uma ruptura moderna.

Na Europa e na América do Norte, o número de padres e freiras caiu de forma dramática nas últimas décadas. A Igreja Romana não enfrenta a crise como "desespero". Em vez disso, reconfigura as paróquias: um único padre para várias igrejas, maior protagonismo de diáconos e leigos. Promove mais vocações no Sul Global (África, Ásia, América Latina), onde o catolicismo está em crescimento. Assim, a Igreja vai migrando o seu centro de gravidade discretamente, sem provocar rupturas nem pânicos. A Igreja Católica Romana não apresenta as reformas como concessões a pressões externas, mas como "purificações" internas, necessárias para ser mais fiel ao Evangelho. De novo: mudança sem aparência de ruptura. A relação com o Islão e outras religiões num mundo globalizado, o confronto direto seria suicida. A Igreja Católica pensa em séculos, não em décadas. Perder território momentaneamente não é problema: o que importa é a continuidade da missão, mesmo que tenha de mudar a forma.

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