segunda-feira, 2 de junho de 2025

Fluxos eleitorais e ideologia


Entre as eleições legislativas de 2022 e as de agora em 2025 em Portugal, o Partido Socialista perdeu 859.693 votos. Onde é que se meteram esses votantes? Não morreram todos! Isto serve para dizer que a classificação de um votante ser de esquerda ou de direita não se aplica. Aplica-se aos Partidos, quando muito, aos seus militantes.

Embora seja necessário olhar com detalhe para os fluxos eleitorais (algo que só as sondagens pós-eleitorais e estudos do tipo ICS/ISCTE costumam oferecer), há algumas hipóteses bastante plausíveis. Abstenção: Uma parte desses votantes pode simplesmente ter deixado de votar. O cansaço político, o desencanto com o PS ou com a política em geral, ou a falta de motivação podem explicar esse afastamento. Mas dificilmente todos. Aliança Democrática (AD) pode ter captado votantes PS mais centristas ou desiludidos. Chega também pode ter absorvido uma parte do eleitorado PS mais ressentido com a insegurança, com o Estado social ou com questões identitárias, um fenómeno semelhante ao que se viu noutros países com eleitorados operários a virar à direita radical.

"Esquerda" e "direita" aplicam-se mais aos partidos do que às pessoas? A classificação esquerda/direita tem mais utilidade como tipologia de partidos e programas políticos do que como rótulo de pessoas concretas, cujas posições são muitas vezes contraditórias. Um votante pode defender o SNS público (posição de esquerda) e, ao mesmo tempo, ser favorável a penas mais duras e deportações de imigrantes ilegais (posição de direita). Outro pode ser contra a corrupção (motivo de voto transversal), sem ter filiação ideológica clara. Os eleitores, especialmente hoje, são pragmáticos, emocionais e reativos a contextos específicos (escândalos, crises, discursos populistas, mais do que coerentes com um “programa político de esquerda” ou “de direita”.

Em suma: O PS perdeu votos porque muitos dos seus eleitores de 2022 se relocalizaram politicamente. E isso mostra que o voto não é um dado estático ou identitário, mas sim um comportamento circunstancial. A esquerda e a direita existem como categorias úteis, mas são os partidos e os comentadores que mais as usam, não os eleitores, que votam conforme o que sentem que melhor responde às suas inseguranças, esperanças ou frustrações no momento.

Nas eleições legislativas de 2025 em Portugal, o Partido Socialista (PS) perdeu aproximadamente 859.693 votos em comparação com as eleições de 2022, quando obteve 2.302.601 votos (42,5%) e elegeu 120 deputados. Em 2025, o PS conquistou 1.442.908 votos (22,8%) e 58 deputados, ficando atrás da Aliança Democrática (AD) e do Chega. Para onde foram esses votos? O partido de extrema-direita (Chega) foi um dos principais beneficiários da perda de votos do PS. Em 2025, o Chega obteve 1.442.928 votos (22,8%) e 60 deputados, tornando-se a segunda força política no Parlamento, superando o PS em número de assentos. Este crescimento significativo indica que o Chega atraiu eleitores descontentes com o PS, possivelmente devido a preocupações com a imigração, segurança e corrupção.

A coligação de centro-direita AD, liderada por Luís Montenegro, venceu as eleições com 31,8% dos votos e 91 deputados. A AD conquistou distritos tradicionalmente favoráveis ao PS, como Lisboa, Coimbra e Setúbal, indicando uma migração de votos socialistas para a coligação. O partido Livre foi o único partido de esquerda a aumentar a votação, obtendo 4,1% dos votos e seis deputados, dois a mais que em 2024. A IL também cresceu ligeiramente, alcançando 5,4% dos votos e nove deputados. Esses aumentos sugerem que alguns eleitores do PS migraram para partidos com propostas mais específicas ou alternativas dentro do espectro político.

Portanto, nos tempos que correm, uma pessoa que não seja militante de nenhum partido, nem seja nenhum ideólogo de uma qualquer ideologia, dizer-se de esquerda ou de direita vale o que vale e tem muito que se lhe diga. Muitos estudiosos da política contemporânea têm vindo a sublinhar: as categorias de “esquerda” e “direita” tornaram-se, para muitos cidadãos, mais simbólicas do que operacionais. O eleitor comum não é ideólogo. Não lê manifestos partidários. Não pensa em termos de coerência doutrinária. Decide muitas vezes com base em experiências concretas, percepções de justiça, segurança, ou confiança pessoal num líder. A vida real é contraditória. Alguém pode defender impostos mais altos sobre os ricos (posição de esquerda) e ao mesmo tempo querer prisão perpétua para pedófilos (posição de direita). Pode acreditar no Estado Social, mas estar saturado da burocracia e ineficácia do setor público.

Dizer-se hoje “de esquerda” ou “de direita”, sem militância ou compromisso ideológico profundo, é muitas vezes mais um gesto identitário, emocional ou cultural do que uma posição com consequências práticas claras. Talvez por isso a política esteja cada vez mais imprevisível. Porque os partidos ainda se organizam como se os eleitores fossem ideologicamente consistentes, quando na realidade são, muitas vezes, voláteis, híbridos e contraditórios.

O Partido Trabalhista (tradição de esquerda) passou a defender políticas pró-mercado, privatizações seletivas e alianças com o setor financeiro. Resultado: atraiu eleitores do centro e até da direita moderada, mas alienou parte da esquerda tradicional. Foi o início claro de uma era em que os partidos de esquerda abandonaram o discurso de classe em favor de uma linguagem tecnocrática e pragmática.

Na teoria sociológica, Zygmunt Bauman com a "modernidade líquida", explicou que vivemos numa era em que as identidades, incluindo as políticas, são fluidas, fragmentadas e instáveis. “O eleitor hoje é como um consumidor num supermercado”, dizia. Muda de marca conforme o momento, a frustração ou a esperança. Não há mais fidelidades ideológicas duradouras como no século XX. Hoje, ser “de esquerda” ou “de direita” já não define de forma clara o comportamento político das pessoas comuns. O eleitor é muitas vezes um pragmático descontente, mais movido por emoções, circunstâncias e percepções do que por ideologias. Só os militantes e ideólogos têm uma coerência ideológica mais rígida. E mesmo entre eles há tensões internas cada vez maiores.

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