sexta-feira, 6 de junho de 2025

A crise de pertença. A nostalgia identitária e a fragmentação do "eu"


Durante séculos, a pertença era algo dado. Nascia-se numa aldeia, num país, numa religião, com um nome e uma tradição que ofereciam um lugar no mundo. A globalização e a modernidade, que segundo Zigmunt Bauman se tornou líquida, dissolveram tudo isso. Hoje, as pessoas estão deslocadas não apenas do território de nascimento, mas também da sua identidade de raiz. Perdem-se os laços comunitários, e o "eu" fragmenta-se. Essa desorientação existencial gera um desejo profundo de encontrar as raízes. Mas onde buscar esse chão perdido? É aí que figuras como André Ventura aparecem. Oferecem a recuperação de uma identidade mítica perdida, mas só imaginada, onde quem pertence é puro, justo, de bem. E os outros são ameaça.

O espetáculo substitui o discurso. Vivemos uma era de hipervisibilidade, onde a política já não se faz apenas com ideias, mas com imagens, gestos, emoções e narrativas curtas. A televisão já havia iniciado esse processo, mas as redes sociais e os algoritmos aceleraram-no exponencialmente. Nessa nova gramática mediática, o debate é substituído pelo "som de byte". A racionalidade cede lugar à performance emocional. E André Ventura é um mestre desse palco. Como outros populistas, ele sabe que é através da emoção e não da razão que hoje se vencem eleições. Porque muito eleitorado de hoje é mais sensível ao sofrido, à vítima carismática. É a presença performativa do pregador que ao mesmo tempo carrega de tensão e de paixão a sua persona. Quanta gente incauta é arrebatada nos dias de hoje.

Guy Debord, já falava da “Sociedade do Espetáculo” nos anos 60 do século XX. Mas hoje, o espetáculo não é apenas parte da política, é a política. Ventura, Trump, Bukele, Bolsonaro, Le Pen... são todos produtos deste novo ecossistema orwelliano. As redes sociais, especialmente as maiores, recolhem dados de forma massiva e silenciosa, influenciam escolhas através de algoritmos opacos, e criam uma sensação de exposição permanente semelhante ao Big Brother de Orwell. Nos últimos 30 anos houve uma degradação constante da confiança nas instituições: parlamentos, justiça, partidos, imprensa, sindicatos, universidades, ciência. Essa degradação não surgiu por acaso: foi alimentada por escândalos reais (corrupção, favorecimentos, impunidade), mas também por uma campanha constante de descrédito. Em Portugal, os casos Sócrates, BES, TAP, e outros foram minando a crença de que o Estado serve o cidadão. O discurso de Ventura cresce exatamente na brecha entre o sistema e o povo: ele apresenta-se como alguém de fora, perseguido, odiado “pelas elites”, mas legitimado pela “voz do povo”.

Esse discurso apela ao ressentimento, à mágoa coletiva, ao desejo de vingança contra os que “nos enganaram”. É profundamente emocional, mesmo que na prática se beneficie do sistema. Ventura é deputado, participa nas eleições, tem tempo de antena. A democracia, neste contexto, é esvaziada do seu conteúdo deliberativo e plural. O que sobra é um clamor por ordem, autoridade, salvação moral. Uma democracia sem confiança, sem legitimidade simbólica, abre caminho para figuras que encarnam o desejo popular de catarse. Ao longo do século XX, com a secularização e o triunfo das democracias liberais, acreditou-se que a política tinha, finalmente, cortado o cordão umbilical com a Igreja.

Contudo, o vazio espiritual e simbólico fez com que a política começasse, lentamente, a reabsorver formas religiosas. Não as formas serenas e reflexivas da fé madura, mas as formas mais primitivas e tribais do culto e do carisma. No caso de Ventura, notam-se todos os sinais de uma teologia política em curso. Ele tem um instinto nato para isso. Até o corpo entra nesse ritualismo. O espasmo esofágico, que poderia parecer fraqueza ou descontrolo, transforma-se numa epifania, uma manifestação do sofrimento do “redentor político” que carrega os pecados da nação. Para os seus seguidores mais fervorosos, aquilo não é histeria, é martírio. Ele, naquele palco do último dia da campanha eleitoral, falou como um evangelista, com pausas dramáticas, mimetizando esgares de sofrimento. E este povo já não quer saber de programas, quer rituais de purificação. Muitos portugueses já não esperam soluções políticas realistas. Esperam salvação simbólica.

A política do nosso tempo aproxima-se, perigosamente, de um novo tipo de irracionalidade coletiva. Não é apenas populismo. É liturgia tribal, é o regresso do mito como forma de dominação através das emoções mais cruas. A cena final do fecho de campanha do Chega: Ventura a aparecer de surpresa, contra indicações médicas, exibindo os pensos das punções venosas, seguido de deputadas emocionadas a cantar o hino nacional em lágrimas, é talvez um dos momentos mais teologicamente e simbolicamente carregados da política portuguesa recente. Tudo é encenação. Os pensos, longe de serem um detalhe médico, tornam-se estigmas simbólicos: sinais visíveis da dor que “ele” sofre pelo país. A sua presença desafia a razão (desobedecer ao médico), mas obedece à lógica do sagrado e do épico. Não é o homem que fala, é o missionário que regressa do deserto, maltratado mas fiel.

As lágrimas durante o hino são outro embuste. A fusão entre pátria e culto, as deputadas mais próximas do CH a chorar cantando o hino, já não estamos na política, estamos no culto público. O hino deixa de ser um símbolo nacional neutro e torna-se um cântico de fidelidade tribal. Elas não choram apenas por Ventura, choram pela “missão”, pela “luta contra o mal”. A política torna-se, assim, um ato de fé. Isto é profundamente eficaz num eleitorado órfão de grandes narrativas e com sede de emoção e identidade. Na cultura "portuga", o mártir é uma figura de poder especial: alguém que sofre em nome de algo maior, e por isso ganha autoridade moral e carismática. Ventura está a construir-se como um mártir vivo, um homem que “não devia estar ali, mas está”, “não se cala mesmo quando o mandam calar”, “sangra, mas não desiste”.

Para este tipo de narrativa o repórter jornalista perde o guião, e até o chão, porque a crítica racional não é ali. Se o acusam de teatralidade, a resposta será: “não suportam ver um homem verdadeiro”. O mártir torna-se inatacável. As consequências são nefastas. Por conseguinte, estamos perante um fenómeno muito sério. O que vimos ali não foi só política, foi drama teológico/populista. Se não houver uma resposta política que reencontre este vínculo -- razão +identidade+ esperança -- esse tipo de espetáculo continuará a crescer.

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