Como evoluiu o Estado de Direito nas sociedades ocidentais – nos últimos anos para se estar a verificar um aumento crescente do sentimento de impunidade através da violência incendiária no espaço público – é a questão. É um paradoxo preocupante. Como pode o Estado de Direito, aparentemente consolidado nas democracias ocidentais, estar a ser desafiado por manifestações cada vez mais frequentes de violência pública, nomeadamente atos incendiários, saques ou vandalismo sistemático?
A resposta não é linear, mas podemos identificar cinco grandes eixos explicativos para essa contradição entre a solidez jurídica formal e a crescente sensação de impunidade. Em primeiro lugar deu-se a erosão da autoridade do Estado que colocou em crise a legitimidade institucional. Nos últimos anos, muitos cidadãos passaram a encarar as instituições políticas, judiciais e policiais como distantes, ineficientes ou corruptas. Esta desconfiança alimenta a perceção de que as regras não se aplicam igualmente a todos. Deixou de haver, se é que alguma vez houve, respostas eficazes às desigualdades sociais.
Um dos paradoxos prende-se com o garantismo que nunca foi bem compreendido, porque à medida que se foi dando mais garantias parece que nunca nenhum interveniente nos processos reivindicativos focava satisfeito. É claro que se virou o feitiço contra o feiticeiro, porque mais garantias agravou a demora na justiça. As decisões judiciais passaram a ser vistas como benevolentes com delinquentes reincidentes. Portanto, a conclusão a que se chegou agora foi que as sociedades ocidentais adotaram modelos jurídicos altamente garantistas, apesar de ninguém contestar que os direitos do arguido devem ser amplamente protegidos. Precisamente um dos pilares do Estado de Direito. Porém, em muitos casos, isso tem sido percebido pelo cidadão comum, não elitista, como obstáculo à punição eficaz, alimentando a sensação de que "não acontece nada" a quem comete crimes.
Ora, tudo isso levou a um desencorajamento das forças de segurança. E o dito povo passou a ter a percepção de que o sistema “trava mais os polícias do que os criminosos”. A população começou a valorizar e a pedir soluções mais robustas, extrajudiciais e mais autoritárias. A globalização, o individualismo contemporâneo e a transformação digital (especialmente através das redes sociais) enfraqueceram os laços sociais locais e os códigos morais partilhados. Isto facilita o surgimento de grupos radicalizados – extrema-direita, extrema-esquerda ou até anarquistas (designados hoje por niilistas urbanos) – que usam a violência como forma de expressão simbólica ou política. Além disso a mobilização online permite organizar rapidamente ações disruptivas. O anonimato ou a espetacularização dos atos favorece o contágio. E por fim, a resposta policial e judicial sente-se condicionada pelo medo da acusação de abuso.
Nos contextos ocidentais, especialmente na Europa e na América do Norte, as polícias têm atuado com grande contenção para evitar acusações de brutalidade ou racismo estrutural. Essa prudência, embora compreensível, tem sido interpretada por certos grupos como fraqueza do Estado, encorajando ações de confronto com o sistema. Isso é especialmente visível em bairros urbanos periféricos onde estão instalados, por inerência da natureza das coisas, os palcos onde se manifesta a violência que acaba por ser instrumentalizada pelas forças políticas radicalizadas pela ideologia. Em certos meios intelectuais, artísticos ou universitários, formas de violência simbólica ou mesmo física passaram a ser justificadas como resistência legítima, sobretudo quando associadas a causas identitárias, ambientais ou sociais. Essa ambiguidade moral corrói a distinção clara entre protesto democrático e delinquência violenta.
Em suma: O Estado de Direito não está em colapso, mas enfrenta uma crise de autoridade, de eficácia operacional e de legitimidade simbólica. A sensação de impunidade nasce não apenas da ineficácia punitiva, mas da perda de consenso coletivo sobre o que é inaceitável no espaço público. Reforçar o Estado de Direito exige não só mais meios para a polícia ou tribunais, mas também restaurar a confiança no contrato social, promovendo justiça percebida como equitativa e normas sociais partilhadas.
Sem comentários:
Enviar um comentário